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Charles Miller: muito mais que o “pai do futebol no Brasil”

Por Leandro Stein

 

Charles Miller sempre é lembrado como o introdutor do futebol do Brasil. Ainda que ele não tenha sido o pioneiro a bater a sua bolinha por aqui, ele merece todas as considerações. Afinal, ao trazer a bola e as regras da Inglaterra, o paulistano ajudou a institucionalizar o esporte. Porém, chamar o homem de longos bigodes “apenas” de pai do futebol brasileiro é desconsiderar toda a sua caminhada. Miller era muito, mas muito mais do que isso. Ele também se consagrou como o primeiro craque e o primeiro artilheiro do Brasil, assim como também foi decisivo para criar o primeiro time e o primeiro campeonato. Ah, e também trouxe o rúgbi para cá, por mais que não tenha pegado tanto quanto a modalidade da bola redonda.

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A partida ocorrida há exatos 120 anos, na Várzea do Carmo, sempre será lembrada como a mais importante da vida de Charles Miller. Os dois gols que anotou garantiram a vitória por 4 a 2 da São Paulo Railway e escreveram a história do primeiro jogo de futebol nos moldes “oficiais” da história do Brasil. Mas não dá para dizer que aquela foi a sua atuação mais brilhante. O fato de ter sido o primeiro jogador brasileiro em um clube profissional da Europa, o primeiro técnico de uma seleção brasileira primitiva, artilheiro de dois Campeonatos Paulistas e capitão nos primeiros três títulos do torneio dizem muito mais.

 

A promessa do Southampton e do Corinthian

Charles Miller tinha em suas veias sangue escocês, nacionalidade dos grandes craques dos primórdios do futebol. Seu pai, John Miller, viera ao Brasil para trabalhar na São Paulo Railway Company, a empresa que expandia as linhas férreas pelo estado, enquanto sua mãe era descendente de ingleses. Aos 10 anos, em 1884, viajou com o irmão para estudar em Southampton. Chegava ao sul da Grã-Bretanha justamente no momento em que o futebol vivia o seu boom, difundido nas escolas como método de educação física e se popularizando entre as camadas populares, sobretudo no fabril norte do país. No ano seguinte, inclusive, o esporte se tornaria profissional por lá.

O brasileiro aprendeu muito bem a arte do futebol na Banister Court School, onde também praticava o rúgbi e o críquete. A ponto de fazer parte do St. Mary’s Football Club, o principal time da cidade – e que, em 1897, seria rebatizado como Southampton Football Club. Os alvirrubros haviam acabado de aderir ao profissionalismo e só entraram na segunda divisão do Campeonato Inglês dois anos depois, em 1894. Ainda assim, aos 17 anos, Charles Miller causou impacto. Logo em sua estreia, marcou um dos gols na vitória da equipe por 3 a 1 em um amistoso.

“Temos aqui na escola vários bons garotos que levam jeito para o futebol, especialmente um chamado Charles Miller, que veio do Brasil e parece ter nascido para esse jogo. Um raro talento, é ouro puro. É um artilheiro nato e recomendo sua escalação. Não vai se arrepender”, disse antes da partida o professor de Banister ao treinador de St. Mary’s, antes da estreia. O jovem atacante se saiu tão bem que acabou convidado para um amistoso com o lendário Corinthian, considerado o melhor time do país e que selecionava apenas os melhores entre os amadores britânicos. Dividindo o campo com membros da seleção inglesa, Miller foi improvisado, mas se saiu bem e o time venceu por 1 a 0.

Já pelo St. Mary’s, Miller fez parte do elenco em 1893/94, na última temporada antes da entrada na segunda divisão do Campeonato Inglês. Disputou três jogos por um torneio amistoso do sul da Inglaterra e, mesmo sem marcar gols, conquistou a taça. Ao mesmo tempo, defendia a Seleção de Hampshire e continuava atuante em Banister, não apenas dentro de campo – também ajudava a organizar as atividades esportivas entre os estudantes, uma capacidade que seria fundamental em seu retorno ao Brasil.

“Enquanto um futuro grandioso aguardava o garoto Charles, sua carreira desportiva florescia no Banister Court School, onde o jovem atacante atingiu a incrível marca de 45 gols em 34 jogos. Também encontrou um lugar na primeira equipe de St. Mary’s e da Seleção de Hampshire. Nessa época, já era conhecido como Nipper – que significa moleque veloz, ágil, célere. Como todo estudante inglês daquela época, Charles também disputava jogos de críquete, no qual era excelente batsman; chegou a defender o time principal de sua escola e o Marylebone Cricket Club, famosa equipe londrina onde atuavam os melhores cricketers da Inglaterra” – trecho de John R. Mills, na biografia ‘Charles Miller, o pai do futebol brasileiro’.

O primeiro jogo

Várzea do Carmo, em 1890.

 

Charles Miller desembarcou no porto de Santos em novembro de 1894, aos 20 anos. E o ambiente perfeito para disseminar o futebol era o São Paulo Athletic Club, criado em 1888 principalmente para a prática de críquete. O jovem brasileiro passou a se reunir com os novos interessados pela modalidade ao final do verão, com a volta das atividades do clube após as férias, para, enfim, ensinar as regras e realizar a partida histórica em 13 de abril de 1895.

“Numa tarde fria de outono, reuni os amigos e convidei-os a disputarem uma partida de futebol. Aquele nome por si só, era novidade, já que naquela época só conheciam o críquete. Perguntaram como era o jogo e com que bola se jogava. Eu tinha a bola, só era preciso enchê-la”, contou Charles Miller à revista O Cruzeiro, em 1952. Naquele momento, começavam os ensinamentos para que as equipes pudessem ser formadas. E o jogo inaugural do futebol brasileiro reuniu os 22 homens na Várzea do Carmo, região do Brás. Os detalhes daquele encontro são de entrevista do atacante à Gazeta Esportiva, em 1942:

“Logo que nos sentimos traquejados, e que o número de praticantes do jogo havia crescido, convoquei a turma para o primeiro cotejo regulamentar: ‘The Gas Works Team’, formado por funcionários da companhia, contra ‘The São Paulo Railway Team’, formado por funcionários desta ferrovia. Foi em 14 de abril de 1895. Ao chegar ao capinzal, a primeira tarefa que realizamos foi enxotar os bois da Cia Viação Paulista, que tosavam a relva pacificamente. Logo depois iniciávamos nosso jogo, que transcorreu de forma interessante, sendo que alguns dos companheiros jogaram mesmo de calças compridas, por falta de uniforme adequado”, contou ao jornalista Thomaz Mazzoni.

Após a partida, os jogadores saíram de campo querendo repetir a experiência por mais vezes: “Venceram os da São Paulo Railway por 4 a 2, entre os quais eu me encontrava. Quando deixamos o campo já havíamos assumido o compromisso de promovermos um segundo jogo”. Durante aqueles primeiros meses, os jogos permaneceram concentrados entre a comunidade inglesa e os membros do SPAC. No entanto, não demorou tanto para que a prática se espalhasse e outros clubes começassem a surgir – em 1898, o primeiro tendo o futebol como carro chefe, criado por estudantes do Mackenzie College.

 

O craque do primeiro torneio do Brasil

Charles Miller seguia com grande reputação graças ao talento que também exibia em campo. O SPAC e os outros clubes paulistanos, contudo, permaneceram limitados a amistosos até a virada do século. A iniciativa de se criar uma liga paulista e colocar uma taça em disputa só se concretizou em 1902. Como liderança do São Paulo Athletic Club, o atacante participou da fundação do torneio que reuniu outros cinco clubes paulistanos: o Germânia, o Internacional, o Mackenzie e o Paulistano.

Aquele torneio serviu para ratificar a grandeza de Charles Miller dentro de campo. Capitão e também treinador (em tempos nos quais os próprios atletas assumiam a responsabilidade), Charles Miller terminou como artilheiro do Paulistão, balançando as redes 10 vezes. Os dois últimos anotados na partida decisiva, contra o Paulistano. Após as duas equipes terminarem com os mesmos 12 pontos na disputa de pontos corridos, realizaram um jogo de desempate no Estádio do Velódromo. O veterano carregou o SPAC na vitória por 2 a 1 e teve a honra de também erguer a taça.

Charles Miller seguiu como referência do São Paulo Athletic Club no bicampeonato em 1903. Anotou três gols na contestada campanha de sua equipe, especialmente pela atuação da arbitragem no novo jogo de desempate contra o Paulistano. Por fim, a posse definitiva da taça veio com o tri no Paulistão de 1904. Miller outra vez terminou a disputa como artilheiro, anotando nove gols. E, pelo terceiro ano consecutivo, o SPAC derrotou o Paulistano em uma partida-extra. O capitão marcou o tento decisivo na vitória por 1 a 0, ovacionado pela torcida no Velódromo ao receber o troféu.

Tanto quanto pelos gols, Charles Miller também se fazia conhecer pelas jogadas de efeito. O atacante é considerado um dos primeiros a tocar a bola com o calcanhar, assim como há alguns relatos de que conseguia executar até mesmo uma forma de elástico. Mas seu lance característico era a chaleira, levantando o pé e dominando a bola pelo alto com calcanhar. Tanto que, na época, o movimento era conhecido simplesmente como “Charles”.

 

A referência no protótipo da Seleção

A partir de 1905, o SPAC perdeu sua hegemonia no Campeonato Paulista, não passando da terceira posição até a despedida de Charles Miller. Entretanto, o atacante seguiu como estrela do futebol local, liderando o primeiro esboço de uma seleção brasileira, criado especialmente para um amistoso em 1906.

Durante excursão do All-White South African Team, os brasileiros foram convidados a montar uma equipe para encarar os visitantes, no primeiro jogo internacional de um selecionado local. As dificuldades de transporte, contudo, terminaram em um combinado reunindo os principais jogadores de São Paulo. O time do técnico e capitão Charles Miller acabou goleado por 6 a 0. Não era a primeira vez que uma seleção paulista era formada: cinco anos antes, o atacante do SPAC também fazia parte do time que enfrentou o combinado carioca, em empate por 2 a 2 no Estádio do Velódromo. Já a “verdadeira” seleção brasileira apareceu pela primeira vez só em 1914, quando os craques de Rio e São Paulo se reuniram para vencer o Exeter City, no Estádio das Laranjeiras.

A aposentadoria de Charles Miller aconteceu bem antes disso. O veterano passou a segunda metade da década de 1900 se revezando entre o ataque e o gol (sim, ele também se dava bem sob as traves) do São Paulo Athletic, além de apitar os jogos do Paulistão – o que fazia já desde 1902. Mas suas aparições em campo eram cada vez menos frequentes. Decidiu pendurar as chuteiras em 1910, prestes a completar 36 anos. E em uma ocasião especial: em amistoso contra o Corinthian, que excursionava no país. Os ingleses massacraram por 8 a 2, mas os dois tentos de honra do SPAC saíram dos pés de seu velho ídolo. Dias depois, Miller realizou sua última partida, pelo estadual.

 

Uma vida dedicada ao esporte

Não foi o adeus dos gramados que afastou Charles Miller do futebol. Pelo contrário. O velho craque permaneceu atuante, especialmente como árbitro do Paulistão até 1916, assim como participando da direção do São Paulo Athletic Club. Só que o esporte que já era paixão de milhares de brasileiros não era alvo de sua dedicação exclusiva. Sua dedicação era multiesportiva, trazendo contribuições principalmente ao rúgbi e ao tênis. Miller também foi um pioneiro a perceber a capacidade dos esportes, e a utilizava de maneira ímpar.

Em 1953, Charles Miller faleceu aos 79 anos. Não teve tempo para comemorar o primeiro título mundial da seleção brasileira, é verdade, mas assistiu ao profissionalismo e à conquista das massas a partir da década de 1930 – deixando de ser um elemento exclusivo dos clubes de elite, como na época em que atuava. Também teve o gosto de ver Friedenreich, Leônidas, Zizinho e tantos outros craques que o substituíram como melhor jogador do país. Para quem começou na Várzea do Carmo, poder sentir a vibração do Maracanã e do Pacaembu lotados já deveria ser uma honra. Afinal, a iniciativa para tudo aquilo havia nascido consigo, quando era apenas um garoto de 20 anos.

Charles Miller foi fundamental para a introdução do futebol no Brasil. Mas não transformou a história sozinho. Ao seu lado, outros pioneiros escreveram os seus nomes para a eternidade: Thomas Donohoe, Oscar Cox, Hans Nobling, Belfort Duarte, Johannes Minnermann, Zuza Ferreira e tantos outros que trataram de levar a bola de futebol sob os braços para vários cantos do país.

 

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