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Remo x Paysandu – O Infinito Re-Pa

Por Caio Brandão da Costa

 

A rixa: inconformados com a perda do Estadual de 1913 para o Remo, os jogadores do Norte Club decidiram fundar em 1914 o Paysandu Foot-Ball Club, que 14 dias depois virou Paysandu Sport Club. O primeiro ano de convivência entre a dupla até que foi amistoso, mas tudo mudou em 1915, quando o primeiro-secretário do Remo enviou um ofício para o presidente bicolor tratando da realização de uma partida cuja renda seria utilizada para ajudar financeiramente as equipes. Os bicolores enviaram um ofício-resposta, cercado de termos insultuosos à proposta azulina. Em um segundo ofício, a Diretoria do Paysandu aceitou o desafio, sem que deixasse de lado os insultos e injúrias. No dia seguinte, o Remo mandou outro ofício dando término às relações amistosas entre os clubes. Estava sacramentado o início de uma das maiores rivalidades do futebol brasileiro – e, quiçá, do mundo!

Quando começou: no dia 14 de junho de 1914, na vitória do Remo sobre o Paysandu por 2 a 1 pelo Campeonato Paraense.

Maior artilheiro: Hélio (Paysandu) – 47 gols

Quem mais venceu: Remo – 268 vitórias (até abril / 2023). O Paysandu venceu 240. Foram 260 empates.

Maiores goleadas: Remo 0x7 Paysandu, 22 de julho de 1945

Paysandu 2×7 Remo, 05 de março de 1939

Remo 5×1 Paysandu, 15 de outubro de 1922

Remo 0x4 Paysandu, 30 de junho de 2001

Paysandu 6×3 Remo, 15 de outubro de 1939

Remo 5×2 Paysandu, 07 de setembro de 1976

Há mais de 100 anos, em Belém, na então terceira metrópole brasileira (ainda respirando o auge da borracha), duas mil pessoas se distribuíram nas arquibancadas do estádio da firma Ferreira & Comandita. Viram, a partir das 16h20 daquele 14 de junho de 1914, o kick off do primeiro dos mais de 750 Re-Pas, clássico mais realizado no mundo. Duas mil almas de cavalheiros e damas da alta sociedade daquela Belle Époque pouco lembrariam em número e postura as 65 mil de povão e elite que 85 anos depois, na decisão estadual de 1999, registraram no Mangueirão o maior público de futebol no Norte do Brasil. Mangueirão cujo nome oficial homenageia Edgar Proença, presente na fundação do Paysandu, em fevereiro daquele 1914. Proença até dera a sugestão de que a escolha do nome do clube fosse por votos nominais: havia quem preferisse Team Negra FC. Proença que depois viria a se tornar um fervoroso remista, além de fundar a Rádio Clube do Pará, em 1928.

Se o Fla-Flu existiu 40 minutos antes do nada, é cabível dizer que o Re-Pa nasceu parecido. O Paysandu surgiu do inconformismo de jogadores do Norte Club com a perda do Estadual de 1913 para o Remo, em novembro. Segundo eles, por irregularidades no empate em 1 a 1 com o Guarany, resultado que premiou os azulinos, cujo clube surgira em 1905 para regatas, como diz o nome – sua sede náutica está na primeira rua de Belém, a Siqueira Mendes, a pouquíssimos metros de pontos turísticos da Cidade Velha belenense, como a Casa das 11 Janelas, o Forte do Castelo (que deu origem à cidade, às margens do Guajará) e as Igrejas da Sé e de Santo Alexandre. A implantação do futebol no Remo aconteceu justamente em 1913.

Já o nome do Paysandu veio de um modismo da administração do então recém-falecido prefeito Antônio Lemos, que nomeou com referências a batalhas e personalidades da Guerra do Paraguai as vias largas que abrira por alguns dos limites que a cidade tinha na época. Edgar Proença fizera aquela sugestão porque alguns fundadores prefeririam o nome Team Negra FC, em alusão ao apelido do Norte Club. Por esse modismo, a travessa adjacente aos portões daquele estádio da firma Ferreira & Comandita, que em 1918 seria adquirido pelo Paysandu, leva até hoje o nome de Curuzu (a rua paralela se chama Chaco). Estádio separado do campo remista apenas praticamente pela Avenida Almirante Barroso: a cancha azulina, quase que de frente ao rival, situa-se entre a Mercês e a Antônio Baena, de onde vem seu apelido Baenão.

 

Primeiros anos e início da rivalidade

Edgar Proença, nome oficial do Mangueirão; Rubilar, ex-remador e autor do primeiro gol; e Hélio, maior artilheiro do clássico.

 

Coube a Geraldo da Mota Reimão anotar o primeiro gol do Clássico-Rei da Amazônia. Apelidado de Rubilar, simboliza como poucos o Remo, pois passou das regatas ao futebol como o próprio clube. Participara ativamente da reunião que em 1911 reorganizara a instituição, então perto da extinção. Já praticava futebol antes: foi um dos fundadores do União Esportiva, equipe alvinegra que venceu os dois primeiros campeonatos paraenses e que se extinguiria nos anos 60, mas que permaneceu por mais de um século como única campeã além do trio Remo-Paysandu-Tuna Luso. Rubilar já havia feito o primeiro gol do futebol do Remo, em um 4 a 1 em 23 de abril de 1913 sobre aquele mesmíssimo Guarany.

Naquele 14 de junho, Rubilar abriu o placar em jogada de escanteio. O Remo ampliou perto do fim do primeiro tempo, com o bicolor Bayma desviando contra as próprias redes – foi dele o desenho do escudo do Paysandu, com o distinto pé alado. Os números finais ficariam no 2 a 1, após Mateus diminuir na segunda etapa depois de passe de Guimarães. O segundo clássico foi travado em 6 de dezembro, na rodada derradeira do Estadual. Houve nova vitória azulina, agora por 3 a 1, com Antonico marcando o primeiro hat-trick do dérbi. O gol bicolor foi de Hugo Leão, que, apesar do sobrenome (o Remo, aliás, receberia esse apelido justamente por ideia de Edgar Proença, já nos anos 1940), foi o homem por trás da fundação do Paysandu: era o mais inflamado dos dissidentes do Norte Club e quem convocou as reuniões da fundação bicolor.

A primeira vitória bicolor veio no terceiro clássico, em 31 de janeiro de 1915, um 2 a 0 com dois gols de Abel Barros. Foi o primeiro clássico disputado por ele e seu irmão Antônio Manoel de Barros Filho, apelidado de Suíço por voltar de estudos nas terras helvéticas. Abel marcaria também no quarto dérbi, uma nova vitória, agora por 2 a 1, de virada. O time tinha ainda o ponta-esquerda Arthur Moraes, “o Coronel”, que jogou no Re-Pa inaugural e seguiria no Paysandu até 1931. Mas quem se eternizou foi Suíço (que era do Guarany), mesmo com o Remo vencendo todos os Estaduais até 1919, um heptacampeonato até hoje não repetido no Pará.

Suíço, lenda do Papão.

 

O persistente Suíço estava lá quando o Paysandu conseguiu seu primeiro título, em 1920, embalado por sua dupla com o filho do governador do Pará: Mimi Sodré, ex-Botafogo e que acompanhou Friedenreich na primeira Copa América, em 1916. Seleção que por telegramas convocaria Suíço com vistas à outra Copa América, a de 1921. Sua apresentação, porém, nunca aconteceu: a verba da entidade para cobrir suas passagens navais foi surrupiada por um golpe do tesoureiro da CBD. E o jogador não teria outra chance: faleceu em 1922 por infecção ocasionada por uma unha de caranguejo (este Pará atrasado só veio proibir o pouco higiênico quitute recentemente…) estragada somada a uma malária.

Os rivais ficaram unidos na dor na mesma época: em 1921, o multiatleta remista Carlos Ferreira Lopes se afogou em prova de apneia na Baía do Guajará e morreu sete dias depois. O Remo passou a ser conhecido como “Clube de Periçá”, apelido de Carlos. E o Paysandu, de “Clube de Suíço”. Até hoje, a seleção principal não voltou a chamar alguém a partir do futebol paraense – em 1968, Manoel Maria jogou no pré-olímpico ainda como tunante, dali se transferindo ao Santos (quase foi à Copa de 1970 e, com menos brilho, atuou na dupla Re-Pa); em 1975, também no pré-olímpico, foi a vez do remista Rosemiro, logo vendido ao Palmeiras, onde em 1976 ganhou o último título pré-Parmalat.

No entanto, não havia “união” alguma entre os clubes. Ela foi extinta completamente alguns anos antes, em 23 de janeiro de 1915, quando o primeiro secretário do Remo, Elzemann, enviou um ofício para o então presidente bicolor na época, Antônio Barros, sobre uma partida cuja renda seria utilizada para ajudar financeiramente as equipes. Os bicolores enviaram um ofício-resposta, cercado de termos insultuosos à proposta azulina. Em um segundo ofício, a Diretoria do Paysandu aceitou o desafio, sem que deixasse de lado os insultos e injúrias. No dia seguinte, o Remo mandou outro ofício que encerrava as relações amistosas entre os times.

Suíço era craque, mas não fazia o Paysandu de refém. Os bicolores, bicampeões invictos em 1920-1921, venceram também em 1922 (cujo segundo jogo foi o primeiro após a tragédia) e 1923. Atestado dessa qualidade é que entre os remistas, nesse tetra bicolor, estava um caboclo marajoara chamado Estanislau Pamplona, que em 1923 rumou ao futebol carioca e sete anos depois integraria a seleção brasileira na primeira Copa do Mundo. E, mesmo sem ele, o Remo foi tri de 1924 a 1926, respondido por um tri bicolor com destaque para quem substituiu Suíço: Sandoval, contratado pelo Vasco em 1931 para substituir Fausto, vendido ao Barcelona.

As duas primeiras décadas da rivalidade já demonstravam a tônica que a permeou nesse seu primeiro século: Remo e Paysandu costumam ter fases algo cíclicas por década. Os anos 1930, equilibrados com quatro títulos bicolores, três remistas e os dois primeiros da Tuna Luso, foram exceções. Cabe destaque um 7 a 2 do Remo em 1939, em que o atacante Jango marcou cinco gols. É a maior goleada remista e Jango até hoje tem o recorde de gols em um só Re-Pa. Naquele mesmo ano, foi ao Santa Cruz e conseguiu outro recorde de gols em um jogo, o do Brasileiro de seleções estaduais: por Pernambuco, fez oito nos 15 a 0 na Paraíba e até teria provocado lamentos no técnico Ademar Pimenta por este não conhecê-lo a tempo da convocação à Copa do Mundo de 1938. Dessa época também são o defensor Evandro Almeida, que dá nome oficial ao Baenão, e o ponta Vevé, eleito em 1982 para o time dos sonhos do Flamengo.

 

Goleadas, hegemonias e os ídolos

Os maiores ídolos da dupla: o miúdo Quarentinha (que não é o botafoguense, também ex-Paysandu) e o gigante Alcino, cujas grandezas se equivaliam em campo.

 

O Paysandu respondeu em cheio nos anos 1940, dominando-os com um pentacampeonato seguido de um elenco que em 1948 rendeu o apelido “Papão da Curuzu”. Chegou a golear Remo e Tuna Luso por 4 a 0 no mesmo dia e aplicou a maior goleada dos Re-Pas: um 7 a 0 em 1945, em pleno Baenão. Entre março de 1943 e maio de 1944, o Paysandu registrou a maior série de vitórias consecutivas do clássico: nove triunfos! A Tuna venceu o Estadual anterior e o subsequente ao penta, fazendo o Remo passar nove anos em seu maior jejum. Brilhavam Hélio Costa, maior artilheiro do clássico, com 47 gols, e os longevos Quarenta, 3º na lista de maiores goleadores, com 28 tentos e que vestiu bicolor entre 1927 e 1945, além de Manoel Pedro, que parou de jogar aos 42 anos em 1957. Só que o revide não tardou: na virada dos anos 1940 para os 1950, foi a vez do Paysandu amargar uma seca de nove anos, também a sua pior.

O Remo igualmente faturou cinco Estaduais nesse período, com destaque a Itaguary (segundo maior artilheiro dos Re-Pas, 30 gols), ao ponta Chaminha e ao goleiro uruguaio Julio Véliz. E a Tuna, talvez no auge do seu futebol, venceu quatro entre 1948-1958. Mas em 1956 um miúdo de menos de 1,60m de altura passaria a demonstrar seu gigantismo no futebol paraense: Paulo Benedito dos Santos Braga, o Quarentinha, sem maiores relações com outro Quarentinha, o mais famoso no resto do país (maior artilheiro da história do Botafogo, revelado também no Paysandu. É o filho de Quarenta). Quarentinha era um meia-armador que chegou ao Paysandu após ser desprezado em testes no Remo. Estreou em 1955 e só pararia 18 anos e 12 títulos (!) estaduais depois. Ninguém mais ganhou tantos Estaduais por um só clube no Brasil.

Quarentinha foi tão importante para a história do Paysandu…

 

… Que ganhou uma estátua na Curuzu!

 

Bené, Quarentinha e Beto. Foto: Perfil do @Museudopaysandu no Twitter.

 

O ano de 1956, aliás, foi o de mais Re-Pas: 16 clássicos, quase um a cada 22 dias. Na Era Quarentinha (que jogou 135 Re-Pas, um recorde), o Paysandu virou o maior campeão estadual e superou o rival em vitórias nos clássicos. Ele estava lá no maior triunfo do clube até então, os 3 a 0 sobre o Peñarol, em 1965. Mazurkiewicz, Forlán, Pedro Rocha, Spencer e companhia só perderam por três gols de diferença para outro adversário em 1965: o Independiente, na final da Libertadores. No gol bicolor, o veterano Castilho, cujo Fluminense seria campeão nacional em 1970 tendo o ex-remista Assis e o ex-bicolor Oliveira. Em 2000, Quarentinha foi eleito o jogador do século no Pará. Sua grandeza foi reconhecida pelo próprio arquirrival em 1973, quando cedeu-lhe o Baenão para o amistoso contra a Tuna Luso que marcou a despedida do meia.

O lendário Papão de 1965. Em pé: Oliveira, Beto, Jota Alves, Abel, Castilho e Carlinhos. Agachados: Quarentinha, Pau Preto, Édson Piola, Milton Dias e Ércio. Foto: Perfil do @Museudopaysandu no Twitter.

 

Desses anos também foram o maior artilheiro do clube, o atacante Bené, os defensores hexacampeões Beto e João Tavares e, bem antes, os talismãs Carlos Alberto Urubu e Ércio e o canhão Vila. Um dos últimos clássicos de Quarentinha foi o 3 a 2 pela final de 1971. O Remo abrira 2 a 0 e levou a maior virada já vista no Re-Pa. Mas também dava largada para uma era prolífica, a Era Alcino, autor desses dois gols e que se tornaria o maior ídolo azulino. Com ele, o time venceu naquele ano o Norte-Nordeste (a final contra o Itabaiana teve gols de Robilota, ex-ídolo bicolor) e foi vice na primeira Série B. Como Quarentinha, Alcino fez do seu time o maior campeão estadual, e, também, status que mantém até hoje, o maior vencedor do clássico, muito por conta de um tabu de 23 jogos entre 1973 e 1976, então o maior do dérbi.

O goleador remista Alcino.

 

Nesse período, o Remo foi tri e teve bons momentos no Brasileirão, especialmente uma vitória sobre o Flamengo no Maracanã em 1975, com gol de Alcino. Mas eram os anos também do lateral Aranha, Bola de Prata da Placar em 1972, que deixava um tal de Nelinho no banco. Do volante Adérson, que iria ao próprio Flamengo e aliou futebol e medicina. Do goleiro Dico, por mais de uma década no Leão. Do já mencionado Rosemiro. Do Roberto Diabo Louro, do ponta-esquerda Amaral, que em 1975 manteve o tabu mais um pouco com gol de bicicleta no fim. Do lateral Cuca, comprado pelo Guarani campeão em 1978, da dupla de zaga Dutra e Darinta. De Mesquita (venceu oito Estaduais e é um raríssimo campeão pelos dois e também na Tuna Luso). Naquele ano de 1975, o Remo encarou o Paysandu no Brasileirão da Série A e Alcino se destacou ao marcar os dois gols da vitória por 2 a 0 em um dia 07 de setembro. No ano seguinte, outro Re-Pa na elite nacional e outra vitória do Remo: 5 a 2, com dois gols de Amaral.

O maior artilheiro do Paysandu, Bené; o maior artilheiro do Remo, Dadinho; e os amigos Bira e Dadá Maravilha.

 

O ídolo Alcino saiu do Leão em 1976 para ser artilheiro do Grêmio no Gauchão, mas sucumbiu ao Inter, que por um ano mais foi campeão nos Pampas. Sem ele por perto, o Paysandu voltou a vencer o clássico e o Estadual naquele 1976, liderado pelos sonoros meias Roberto Bacuri e Patrulheiro, o driblador ponta Lupercínio e Nilson Diabo. Um tal Bira era reserva e foi trocado por um título (já se viu algo assim no futebol?): o Remo aceitou Bira em 1977 em troca de reconhecer o título bicolor em 1971, que os azulinos questionavam: aquela virada viera em prorrogação só aceita verbalmente. Bira, às vezes com assistências de Júlio César “Uri Geller”, virou um supergoleador. O Remo voltou a ser tri mesmo com o Paysandu contratando Dadá Maravilha em 1979: Bira foi o artilheiro, com um recorde ainda não batido de 32 gols.

Bira e Dadá, estrelas do futebol paraense nos anos 1970.

 

O primeiro Re-Pa de Dario, aliás, é até hoje o segundo jogo mais presenciado no Norte, com 64 mil pessoas, que no Mangueirão viram Bira abrir o placar e abraçar Dadá na comemoração, para depois testemunhar Dario empatar em 1 a 1. O atacante “beija-flor” cumpriu a promessa de que iria marcar o “gol sossega Leão” em sua estreia no Re-Pa. Bira e Dadá viraram amigos e foi o veterano quem recomendou ao Internacional contratar Bira, que naquele mesmo ano foi titular no Brasileirão vencido pelo Inter em 1979, o único que algum time conquistou de forma invicta. Quem, inversamente, deixaria o Colorado rumo ao Pará foi quem fez os gols da vitória sobre o Vasco dentro do Rio de Janeiro na ida daquela final, que praticamente garantiu a taça: Chico Spina. Leia mais sobre a era de Dadá no Paysandu clicando aqui!

Se os anos 1970 foram de alegrias aos remistas, os anos 1980 lhes foram uma década perdida. Ganharam um novo matador, Eduardo Soares, o Dadinho, maior artilheiro da história do Remo. Mas ganhou pouco, só o Estadual de 1986. Embalado por Spina, o Paysandu foi tri de 1980-1982 (um dos integrantes era o lateral Aldo, irmão de Bira e depois tri também no Fluminense). E com Charles Guerreiro e Cabinho, quinto maior artilheiro bicolor, venceu outros dois Estaduais em uma década em que a Tuna Luso também foi forte. A reação azulina foi contratar um outro ídolo bicolor, o folclórico Luisinho das Arábias, que pouco pôde fazer: chegou em 1989 e logo no início do Estadual morreu durante o sono em seu apartamento.

Para responder à saída de Luisinho, o Paysandu contratou justamente Dadinho, que desceu de helicóptero na Curuzu. Mas, de início, os magros anos 1980 do Leão deram lugar à sua década mais festejada. O time foi tri de 1989 a 1991, ano em que Dadinho pôde triunfar no Paysandu: o clube venceu a Série B com gol dele no fim da decisão contra o Guarani. Mas, liderado pelo “Rei” Artur (colega de Jardel no grande Porto dos anos 1990), o Remo revidou indo às semifinais da Copa do Brasil, parando somente no campeão Criciúma, de Luiz Felipe Scolari. Os bicolores responderam em 1992, especialmente em Edil Highlander, maior artilheiro do Brasil naquele ano, quando a tentativa de um inédito tetra profissional do Remo foi respondida com quatro vitórias de 1 a 0 – na última delas com Mendonça marcando com chute desde o meio-campo.

A maior hegemonia

Biro-Biro, à esquerda, contra o finalista do Brasileirão de 1993 Vitória, e Giovanni no 5 a 2 sobre a Portuguesa.

 

Mal sabiam os bicolores que a partir do Re-Pa seguinte colecionariam desprazeres. De 31 de janeiro de 1993 até 7 de maio de 1995, foram nada menos que 33 clássicos seguidos de invencibilidade do Leão, com 21 vitórias (seis seguidas entre agosto de 1995 e setembro de 1996, além de um emblemático intervalo de nove vitórias e um empate em 10 jogos) e 12 empates. Os grandes personagens do Remo não poderiam ser mais simbólicos na 33ª vitória, dois sinônimos de raça, suor e vitórias com a camisa azulina: o volante Agnaldo “Ser Boneco”, que só não esteve em 1994 neste ciclo, e o zagueiro Belterra.

O Remo de 1993, de Belterra e, atrás dele, o bigodudo Agnaldo “Seu Boneco”; e o Paysandu de 2001-2003, de Sandro e Vandick.

 

Para além do clássico, o melhor do ano foi o primeiro. O Remo chegou à fase semifinal do Brasileirão 1993, eliminando a Portuguesa de Dener com um 5 a 2 em Belém seguido por um 2 a 0 em um Canindé hostil. Das caras conhecidas, o ponta Mauricinho, ex-Vasco, o lateral Édson Boaro (da seleção na Copa de 1986), o inconfundível ex-corintiano Biro-Biro e o atacante Alex Dias. Havia também Giovanni, cuja estreia foi histórica: foi no último Re-Pa na elite do Brasileirão, em 6 de outubro de 1993, um 1 a 1 com gol dele. Só que o futuro astro de Santos e Barcelona não vingou depois, e, na visão da torcida, era quem costumava destoar na melhor campanha de um clube paraense na primeira divisão, naquele oitavo lugar geral.

Dali até 1997, o tabu, acompanhado de um penta seguido que àquela altura recolocou o Remo como maior campeão estadual, teve como outros personagens o bigodudo atacante Luís Müller, o goleiro Clemer e a versão paraense do Walter: Ageu Sabiá, de pernas finas em contraste com a barriguinha. É quem mais fez gols (37) por clubes paraenses em todas as divisões do Brasileirão. O clássico 33 ganhou contornos épicos: ele foi um dos cinco atacantes que Belterra e Agnaldo colocaram para virar um jogo perdido por 1 a 0 até os últimos dez minutos.

O Remo havia demitido seu técnico Fernando Oliveira dias antes, após a perda da Copa Norte para os acreanos do Rio Branco em pleno Mangueirão – o título valeria vaga na Copa Conmebol. Belterra, presente em 32 dos 33 clássicos do tabu, e Agnaldo ordenaram a substituição do zagueiro Ricardo e do meia Damião por mais dois atacantes, Marcelo Papi e Zé Raimundo, que se somaram ao trio ofensivo Luís Carlos Apéu, Ageu e ao ex-Paysandu Edil. Nos últimos dez minutos, Agnaldo empatou, Zé Raimundo virou e Edil deu o tiro de misericórdia. O Paysandu só desfez o tabu após atender a uma sugestão supersticiosa de não usar a camisa principal e sim uma reserva. Deu tão certo que nesse dia o Remo perdeu até pênalti, com a cobrança e também o rebote sendo defendidos pelo goleiro Claudecir, ele próprio ex-personagem remista ativo no tabu. Se a bola entrasse, o Remo ia arrancar um empate em 1 a 1, e pouco depois, aos 40’ do segundo tempo, Wagner matou o jogo ao assinalar o 2 a 0.

Em 1997, o Papão ainda se gabou de fazer o gol mais rápido do mundo na época, de Vital. Mas o Estadual terminaria perdido com gol de antigo ídolo, o meia Rogerinho, único presente nos dois títulos alviazuis na Série B: estava lá em 2001 e faturaria também a Copa Norte e a Copa dos Campeões em 2002 pelo Papão, jogando ainda alguns minutos em um certo jogo na Argentina em 2003… Ainda sem ele de volta, o clube voltou a ser campeão em 1998. Ainda que o protagonista tenha sido o atacante Wagner (ex-Inter e Flu), cabe menção que os caudilhos Agnaldo e Belterra haviam atravessado a Almirante Barroso e viraram bicolores.

Em 1999, um gol de Aílton (ex-Flamengo, Fluminense e Grêmio) naquele jogo de 65 mil pessoas reverteu uma boa campanha daquele Paysandu do ex-santista Guga. Em 2000, o Papão foi novamente campeão, com o século XX se encerrando com a dupla tendo 38 Estaduais cada, mas com a superioridade azulina no clássico reforçada pelo “Re-Pa do Século”: definiram o terceiro colocado no Módulo Amarelo da Copa João Havelange, que dava a última vaga aos mata-matas. Robinho fez os três gols no dia 12 de novembro na vitória por 3 a 2 do Remo, não revertidos pelo 1 a 1 no dérbi de volta.

 

Século XXI: do apogeu bicolor à gangorra entre divisões

O Mangueirão, reinaugurado para grandes façanhas do Papão a partir de 2002.

 

Se a história mais do que centenária do Re-Pa é uma roda, os anos seguintes não desmentiram. O Paysandu de Sandro, Vandick, Lecheva, Jobson, Vanderson e Zé Augusto e depois de Vélber, Iarley e Robgol retomou o posto de maior campeão estadual isolado e foi ainda mais longe naquela época alviceleste mais festejada. O maior e mais famoso esquadrão da história do Paysandu ainda conseguiu atingir uma marca de 11 clássicos seguidos sem perder para o rival entre 2000 e 2002, a maior série do século XXI. Durante esse período, o atacante Albertinho conseguiu provocar o rival mesmo sem jogar contra ele. Em um duelo contra a Tuna Luso, na Série B de 2001, o atacante marcou um gol, e, na comemoração, tirou a camisa e a colocou na mascote do Remo, pois o jogo aconteceu no estádio Baenão. A torcida foi ao delírio e Albertinho cravou seu nome na história do clube.

 

Sandro Goiano, um dos xerifes do meio de campo do Papão.

 

Mesmo terrivelmente decadente a partir de 2004, o Papão ganhou metade dos últimos dez Estaduais, enquanto um Remo ainda menos feliz desfez um jejum de seis anos em 2014, ano com 10 clássicos disputados. No primeiro, o Remo contava vantagem com o fato do melhor jogador rival, o lateral Yago Pikachu, se ausentar para negociar possível saída. Apresentou Eduardo Ramos, ex-Paysandu em 2012, com a provocativa camisa 33. Perdeu de 2 a 1. Os dois seguintes foram pelas finais do primeiro turno, que se encerraram com o Paysandu tendo melhor campanha ao desfazer no dia do seu centenário o saldo de gols, então mais favorável ao Remo, goleando o São Francisco por 6 a 0. Mas, ao não vencer uma das semifinais e o Leão vencer ambas, os azulinos tiveram a vantagem de dois empates nas finais e assim cumpriram.

Outros dois clássicos seguintes foram pelas semifinais da Copa Verde. Em melhor fase, com invencibilidade de vinte jogos, o Papão avançou vencendo um clássico (gol de Héverton, aquele) e empatando o outro. Voltar às competições internacionais vencendo no centenário um torneio regional bateu muito perto, literalmente na trave. Decepção em parte esquecida pelo desfecho do segundo turno: era o Paysandu quem tinha a vantagem do empate. Na primeira final, abriu 2 a 0 e permitiu a igualdade. No segundo, perdia por 3 a 1 até os últimos dez minutos, mas empatou no último lance da partida. Provocações de um torcedor bicolor a invadir o campo originaram uma briga generalizada que custou diversas expulsões mútuas.

Mordido, um Remo reforçado por uma boa garotada do sub-20 (de bela campanha na Copa do Brasil 2013 da categoria) massacrou por 4 a 1 na ida da finalíssima. Na véspera da volta, um “brilhante” TJD suspendeu todos os jogadores daqueles tumultuados 3 a 3.

Longes da elite do futebol nacional, os rivais acabaram travando duelos eletrizantes nas divisões inferiores e também em copas regionais. Em 2015, na semifinal da Copa Verde, o clássico Re-Pa decidiu uma vaga na decisão do torneio. O Paysandu venceu o primeiro jogo por 2 a 0, placar devolvido pelo Remo na volta. A partida foi para os pênaltis e o Leão venceu por 5 a 4. Na final, porém, os azulinos conseguiram perder o título para o Cuiabá após vencer a ida por 4 a 1 e levarem 5 a 1 na volta…

O troco do Papão veio em 2017, quando o bicolor venceu o Campeonato Paraense em cima do rival e alcançou os 47 títulos no torneio. No ano seguinte, título do Remo após duas vitórias nas finais, que se somaram às duas nas fases anteriores e fizeram a torcida apelidar as quatro vitórias sobre o rival como “as 4 peias”. Já em 2019, o Paysandu saboreou um empate como se fosse uma vitória sobre o rival. Na última rodada do Grupo B do Campeonato Brasileiro da Série C, os rivais duelaram no Mangueirão por uma vaga nas quartas de final do torneio. Era o primeiro grande duelo entre a dupla em uma competição nacional desde a Copa João Havelange de 2000. Deu empate em 1 a 1 e o Paysandu acabou classificado, eliminando o Remo no “Re-Pa do século XXI”, como ficou conhecido o duelo (isso até o 1 a 0 do Remo em janeiro de 2021, que sacramentou o acesso dos azulinos à Série B depois e 14 anos e passou a ser o mais recente “Re-Pa do século XXI”).

Com uma infinidade de causos e histórias, o Clássico-Rei da Amazônia é um patrimônio cultural imaterial de Belém, berço de clubes que representam de maneira ímpar o Pará como poucos representam seus estados no mundo. E, com quase 800 jogos entre si, nunca se cansam de duelar e provocar. É acidez no cangote e ira pura. Ontem, hoje e infinitamente.

Texto dedicado a Ferreira da Costa, de vasta e imprescindível obra a amantes do futebol paraense.

 

Curiosidades e grandes causos do Re-Pa:

  • O Paysandu atualmente possui 49 títulos estaduais, enquanto o Remo tem 47 canecos;
  • Itaguary, 2º maior artilheiro da história do clássico com 30 gols, conseguiu alcançar a marca vestindo a camisa dos dois rivais, um fato muito comum na história de Remo e Paysandu;
  • A maior série invicta do Paysandu na história do clássico é de 13 jogos, entre janeiro e dezembro de 1970;
  • Belém é a cidade que mais registrou clássicos Re-Pa na história com 754 partidas. O Clássico-Rei já foi disputado também no Maranhão, outros municípios do Pará e até em Paramaribo, no Suriname, em excursão da dupla por lá em 1977. Eles voltaram ao país em 1984 e 2011;
  • No estadual de 1972, as luzes do Baenão foram apagadas por oitenta minutos em meio à discussão se o gol remista seria ou não validado. Quando foram reacesas, as redes haviam sumido e o Paysandu, com interesse que o jogo prosseguisse, ordenou que o roupeiro fosse buscar redes na Curuzu, a duas quadras dali. O jogo seguiu e o título ficou com o Papão;
  • Aliás, a distância entre os dois estádios é exatamente duas quadras. Chega a ser mais perto que os argentinos Racing e Independiente, e a nível mundial só Dundee e Dundee United têm canchas mais próximas um do outro;
A distância entre o Baenão e a Curuzu.

 

  • Muito da idolatria remista ao Alcino se deve por ele ter levado o time a encerrar as vacas magras impostas pelos 18 anos da Era Quarentinha. Nesse período, o Remo nunca conseguiu nem dois títulos seguidos, mas com Alcino faturou um tricampeonato e tomou a dianteira de vitórias no clássico. Muito por conta de um tabu de 23 jogos invictos no clássico;
  • No dia da maior goleada da história do clássico, os 7 a 0 de 1945 do Paysandu em pleno Baenão, um dos bicolores era remista de coração e ex-jogador azulino (Izan). E um dos derrotados foi punido (por propiciar a goleada ao ser expulso e desfalcar a defesa remista) até no quartel militar onde estava alistado…;
  • Em um suposto Re-Pa de décadas passadas, o fantasma do jogador Suíço (muito citado lá no início do texto, o único jogador convocado à seleção principal a partir de um clube paraense) teria auxiliado o goleiro bicolor a garantir uma vitória defendendo um pênalti;
  • O maior público da história do Estádio Baenão foi na goleada de 5 a 2 do Remo pra cima do Paysandu no clássico válido pelo Campeonato Brasileiro de 1976: 33 487 torcedores. Além do triunfo categórico, a torcida do Remo celebrou o fim da invencibilidade de 31 jogos do rival na temporada;
  • O Re-Pa é provavelmente o clássico com maior número de jogos com WO e discussões da história. Foram pelo menos 11 jogos com WO (a maioria por um dos times não aparecer para o jogo) e vários encerrados antes do apito final;
  • O primeiro WO foi registrado em um amistoso de 1919, quando o Remo abandonou o gramado quando o jogo estava 1 a 1 e o Paysandu foi proclamado vencedor. Veja abaixo outros famosos:

Em março de 1939, o jogo estava empatado em 1 a 1 quando o Paysandu reclamou de impedimento no gol de empate do Remo e abandonou o campo. O Remo ganhou por WO;

Em novembro de 1955, o jogo estava empatado em 1 a 1 quando o juiz deu pênalti para o Remo. Os jogadores não deixaram que o pênalti fosse cobrado e o Remo ganhou por WO;

Em julho de 1970, jogou-se apenas o primeiro tempo. O Remo tirou a time de campo em protesto pela escalação do árbitro Teodorico Rodrigues, que havia sido vetado por sua diretora;

  • Em um clássico de 1993, a pressão da torcida azulina foi tão grande no estádio da Curuzu que parte do alambrado ruiu, ferindo vários torcedores. O jogo teve que ser cancelado e remarcado para o Mangueirão dias depois;
  • Entre dezembro de 2000 e junho de 2001, o Paysandu aplicou três goleadas distintas no rival: 4 a 1, em dezembro de 2000; 4 a 0, em fevereiro de 2001 e dentro do Baenão; e 4 a 0, em junho de 2001, de novo no Baenão;
  • Em abril de 2009, aconteceu o clássico de número 700. O Papão vinha melhor e seu presidente afirmou que o bicolor não deveria ter pena do “miserável”, no caso, o Remo. Contrariando as expectativas, o Leão venceu por 2 a 1, gols de Helinho e Beto, no jogo que ficou conhecido como a “Revolta dos Miseráveis”;
  • O Re-Pa ainda é um dos poucos clássicos do Brasil que permite a presença das duas torcidas em dia de jogo;
  • Em jogos pelo Campeonato Paraense, a vantagem é do Remo com 126 vitórias. São 107 vitórias do Paysandu e 122 empates;
  • Em jogos pelo Campeonato Brasileiro (todas as divisões), são 33 jogos, 11 vitórias do Remo, 8 vitórias do Paysandu e 14 empates. Se considerarmos apenas a Série A, são 10 jogos, três vitórias do Remo, duas do Paysandu e cinco empates;
  • Existe praticamente um empate técnico entre as torcidas de Remo e Paysandu: são 1 170 719 de azulinos e 1 130 399 de bicolores, totalizando 14,5% e 14% para cada um, respectivamente.

 

Caio Brandão da Costa é advogado e Editor do Futebol Portenho, o melhor site sobre futebol argentino do país!

 

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